“Woodpecker” de Gonçalo Barreiros

Desde cedo e em muitas práticas, linguísticas e não linguísticas, o animal e o vegetal constituiram fontes de inúmeras metáforas que nos permitiam constituir uma imagem do humano na sua complexidade e na sua relação essencial com os limites.

Gonçalo Barreiros, com Woodpecker, coloca-nos precisa e rigorosamente perante uma certa arqueologia do modo como a metáfora constituiu, desde sempre, um modo de imaginação de uma certa essencialidade humana que passava desde logo pela diferença. Ainda assim, uma imaginação que, reconhecendo-se enquanto tal, se colocou sempre enquanto utensílio à mão para uma certa conformidade com as verdadeiras formas do real.

Exposição “Woodpecker” – Gonçalo Barreiros – 14 de Janeiro a 11 de Março na Ermida da Nossa Senhora da Conceição.
Inauguração: 14 de Janeiro 18h

Ele [o onomaturgo], designa unicamente as relações das coisas com os homens e socorre-se para a sua expressão das mais ousadas metáforas. Uma estimulação nervosa traduzida numa imagem! Primeira metáfora. A imagem de novo transformada num som! Segunda metáfora.
Friedrich Nietzsche, «Acerca da Verdade e da Mentira»

Desde cedo e em muitas práticas, linguísticas e não linguísticas, o animal e o vegetal constituiram fontes de inúmeras metáforas que nos permitiam constituir uma imagem do humano na sua complexidade e na sua relação essencial com os limites.

Gonçalo Barreiros, com Woodpecker, coloca-nos precisa e rigorosamente perante uma certa arqueologia do modo como a metáfora constituiu, desde sempre, um modo de imaginação de uma certa essencialidade humana que passava desde logo pela diferença. Ainda assim, uma imaginação que, reconhecendo-se enquanto tal, se colocou sempre enquanto utensílio à mão para uma certa conformidade com as verdadeiras formas do real.

Woodpecker fala-nos – ou instala-se – a partir de uma materialidade problematizadora das linguagens: humano, animal, vegetal (nesta ou noutra ordem) surgem como planos intermutáveis, cuja ligação se estabelece precisamente a partir das suas diferenças. Um corpo estranho, este, que se constitui a partir da incomensurabilidade entre as partes – para dar conta dele, a linguagem teria de ser capaz de dar a própria coisa, na sua singular materialidade, apresentando-a, apenas, sem a comunicar. A linguagem seria, assim, tipologia e esse estranho corpo veria nela não mais do que a sua própria figura.

Woodpecker tem um som: uma frequência. Qual o som próprio a este campo pré-linguístico no qual animal, humano e vegetal são duplos numa mesma superfície? Qual a frequência própria à vitalidade possível a este corpo? Woodpecker tem o som da duração – este é um som geodésico, que desloca, nesta superfície sem fundo, as qualidades e propriedades das coisas recombinando-as sempre de novo como sinapses. O som das curvaturas que reorganizam continuamente as formas por meio de uma repetitiva equação espacial. Que criatura é esta que Woodpecker poderá vir a ser? Esta é a aberta questão que nos coloca Gonçalo Barreiros, à qual só encontraríamos resposta se pudéssemos, literalmente, tocar a fractura essencial a todo o corpo que se constitui nos avessos das metáforas.

Cíntia Gil

www.travessadaermida.com

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